sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Reflexões sobre a rede



No instante em que escrevo estas linhas, estou sentado em frente ao mar. O sol acabou de se pôr, e já escurece pela praia afora. Imagine-se o leitor recém-desembarcado numa ilha distante, vendo a traineira que o trouxe rumando ao horizonte e o deixando só com suas bagagens e anfitriões...

Este não é um texto sobre Malinowski ou trabalho de campo, entretanto. Como de costume, falaremos de falar, e isso apenas porque me mudei para outra casa recentemente, para uma chácara em meio ao mato, zona rural, cercada de roça e pasto, ao lado de um lago e sem qualquer sinal de internet ou celular. Imagine, agora, em pleno ano de 2017, em pleno Brasil, um ser humano quase se isolar do mundo das comunicações por duas, três semanas. Sem poder falar nas redes, sem poder ler de suas bolhas de informações selecionadas, não tendo a quem bradar sobre golpe, contra ou a favor, a não ser para vacas, morcegos e pequenos sapos. Imagine...

Um dos traços mais encontráveis em diversas tradições místicas e espirituais diz respeito ao silêncio. Ao isolamento, afastamento também. Diz respeito, de certa forma, ao exercício atento da atenção, à paciência atenciosa de ouvir o tempo que passa e não se importar de não poder falar. Melhor: em não desejar falar, em se esforçar para que falar não seja preciso. Porque, justamente, a fala não é precisa.

Dois recortes etnográficos: 1) diz-se que um monge budista meditava em sua cela, sozinho, paredes por todos os lados, e de repente sua percepção captou outros monges conversando no pátio fora. Inicialmente, ao lado dos dois monges era possível perceber – o meditador percebeu – seres benfazejos, protetores do Dharma e da prática budista, que acompanhavam os monges que no pátio conversavam. Depois – o meditador notou, ainda de sua cela cerrada – os seres benfazejos desapareceram, e em seu lugar foi possível ver uma presença densa e carregada, como os asuras e demônios que tentam os seres com ilusões, que os cobrem de raiva, desgosto, discriminação. Quando mais tarde o meditador encontrou com os dois monges, perguntou sobre o que falavam naquela tarde, no pátio. Mencionaram que primeiro tratavam da prática budista, discutiam os ensinamentos do Liberto, compartilhavam de suas experiências no Caminho. “Até aí, ok, entendo a razão dos benfazejos” – pensou o meditador. Depois os monges completaram: ainda no pátio, haviam passado a tratar de outros temas, mais banais e comezinhos, mesquinhos mesmo, como as fofocas do templo e o exercício humano, demasiado humano, de recriminar o outro. “Teje explicado”, o meditador concluiu.

2) O xamã vai ao outro mundo, ou outros mundos. Trava relações com outros seres, faz acordos, amigos, inimigos, empreende batalhas e presta serviços a diversos seres dos mais diversos. Quando volta a este mundo, do qual nós não saímos, não se arroga a explicar o mundo alheio. Não é capaz de explicar o outro universo em toda sua magnitude, em tudo aquilo que foi experimentado, visto, ouvido, vivido. Traduz, no máximo: aproximadamente, metafórica e pragmaticamente. Manuela Carneiro da Cunha explica:




Sem comunicação, então, comunga-se com o ambiente de outro modo. Como se a linguagem articulada não fosse a única ponte possível para o contato. Como se o ambiente e o ser humano, esse – este – animal desanimado, distante e distanciado, não fossem dois elementos totalmente dissociáveis um do outro. Como se não houvesse, de certo modo, Natureza e Cultura, mas apenas uma vivência una, um tanto natura, um tanto cultura, um tanto confusa. A percepção do ambiente, talvez como sugerisse Ingold, exige a percepção da vivência do e no ambiente, pelo e para o ambiente. Como a vivência do Caminho, a pratica do Dharma em nossa primeira cena, demandasse dos praticantes uma confusão com o próprio Caminho. Distancie-se, diria o ser benfazejo, e sua fala logo será imprecisa, desnecessária. Mesmo prejudicial.

As palavras torcidas, então, parcialidades relativas, verdades de diversos mundos, não equivalem ao falar desbragado. Às certezas muitas, às fúrias conscientemente direcionadas – e às inconscientes também. Estar isolado do mundo das comunicações e das ordens do dia dão a oportunidade de encher o dia de outras coisas, às vezes esvaziá-los, às vezes até mesmo dar conta da ordem de dias passados que passaram rápido demais, em meio ao torvelinho humano das redes sociais.

Uma das questões mais prementes a diversas tradições, ao budismo certamente, talvez a alguns xamanismos – e também a minha prática, quer budista, quer acadêmica – diz respeito ao falar. Aos modos e momentos de falar, e à atenção individual que cada fala poderia manter sobre si, para não contribuir apenas com cacofonias e desesperanças.

Ainda esperamos, na chácara, que instalem internet a rádio. É a única forma de voltarmos, ao menos um pouco, à esta vasta comunicação. Enquanto isso, os bichos.

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