quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Bell Hooks fala sobre o estado do feminismo e como prosseguir sob o governo Trump

Quero voltar a falar sobre nerdices aqui, em especial sobre Westworld. Mas estou em Repouso Funcional, o que quer dizer que eu não posso usar o computador por mais do que alguns minutos em seguida até os meus dois ombros desinflamarem, e isso vai demorar. Logo eu, a louca prolixa. Mas a bell hooks deu esta entrevista, e acho que ela diz coisas bem sérias aqui, apesar de eu mesma não gostar muito do vocabulário do "patriarcado", que me parece simplificar muito as dinâmicas de assimetria de gênero, e não concordar inteiramente com sua avaliação sobre Sanders. A última pergunta para mim é a mais importante.

Enfim, achei que valia a pena disponibilizar em português. O original está aqui, Bell Hooks On The State Of Feminism And How To Move Forward Under Trump: BUST Interview

2016 supostamente seria um ano emblemático para as mulheres: o ano em que as eleitoras mulheres ajudariam Hillary Clinton atravessar o "maior e mais duro teto de vidro" para alcançar o Salão Oval. Ao invés disso, os amercianos acordaram no dia 9 de novembro para descobrir que Donald Trump, uma personificação implacável do patriarcado, fora eleito presidente. Enquanto muitas feministas desiludidas tentam compreender o que tudo isso significa, o BUST contatou uma das vozes pioneiras no feminismo interseccional, e uma das pensadoras mais influentes do movimento: a autora e ativista bell hooks. Por mais de três décadas, hooks examinou a sobreposição entre racismo, classismo e sexismo, publicando mais de 30 livros sobre o assunto (incluindo Ain't I a Woman, Black Women and Feminism e Feminist Theory: From margin to center). Ela também fundou o Instituto bell hooks no Kentucky's Berea College, que trabalha para compreender melhor "os modos como o sistema de exploração e opressão se interseccionam". Aqui, conversamos com hooks sobre a ascensão de Trump, o problema do patriarcado benevolente, e para onde iremos daqui.

É difícil não sentir que a eleição do Trump é uma enorme derrota, um sinal de que a América está afastando o feminismo por alguém que abertamente rejeita a autonomia corporal da mulher e a ideia de que mulheres tem valor além de suas aparências.
É absolutamente evidente que muito da campanha anti-Hillary Clinton foi baseada em misoginia e ódio à mulher, e que de muitos modos ela se tornou a representação simbólica do feminismo. Então muitos homens patriarcais, especialmente homens brancos, realmente sentiram que o feminismo havia tirado coisas deles. E eu acho que para estes grupos de pessoas, a derrota de Hillary Clinton teve um sentido de vitória, como se eles estivessem retomando certo poder patriarcal. Mas o patriarcado não tem gênero. Havia muitas mulheres que não apoiaram Hillary Clinton ou votaram nela. Não podemos ver isso como relativo a um único homem misógino ou odiador individual, mas toda a estrutura da sociedade. Multidões de pessoas realmente odeiam e temem mulheres empoderadas.

Parece que temos uma ideia falsa do progresso que mulheres fizeram, e que este é um lembrete de que há muito trabalho a fazer.
Exatamente. Eu senti fortemente que há um efeito rebote feminista acontecendo há algum tempo. Por que estamos chocadas? Foi apenas o patriarcado conseguindo uma voz publicamente sancionada e silenciando uma voz feminista, como se fosse esta a guerra que acontecia. E então o patriarcado pôde sentir algo como "nos vamos vencer esta guerra".
É curioso porque uma das minhas melhores colegas nos estudos de mulheres aqui em Berea sempre se frustrava comigo porque eu dizia a ela que sentia fortemente que o sexismo e a misoginia colocam de fato uma ameaça maior às mulheres negras e a todas as mulheres do que o racismo. Ela apenas pensava "bom, isto é ridículo". Ela é negra. Na noite da eleição ela me chamou e disse "você esteve certa todo este tempo". O sexismo é arraigado tão, tão profundamente. Se você considerar discursos públicos sobre raça no ano passado, onde estão os grandes discursos públicos sobre feminismo? Eles não existem.

Tantas organizações progressistas contratam primariamente homens brancos. Não passou em branco para mim que a equipe senior de Bernie Sanders era composta primariamente de homens brancos.
Bernie Sanders não disse nada sobre políticas feministas. Ele não integrou qualquer tipo de política feminista em sua visão. Eu acho que a coisa mais importante é que nós vejamos isto como o continuum do poder patriarcal se reafirmando, e não como se Trump o tivesse inventado ou tornado possível - porque estava lá. Permanece lá, no marido de Hillary CLinton e em todos estes homens - exceto que o marido de Hillary Clinton e Barack Obamam se tornaram os patriarcas benevolentes. Eles são os homens patriarcais que nós amamos.
Anteriormente, quando Barack Obama se tornou presidente, as pessoas lhe perguntavam, "Bom, a Michelle Obama vai lhe influenciar, ela virá às reuniões?" Eu esperei que ele dissesse, "Ela é uma cidadã tanto quanto qualquer um e ela tem o direito a suas opiniões e pensamentos". Ao invés disso, ele seguiu com a ideia de que não, ela vai cumprir seus deveres de esposa e mãe. E não, sim, esta é uma mulher impressionantemente esperta e analítica que vai com certeza ter uma voz a ser ouvida.
Mesmo que muitas pessoas tenham se comovido com o discurso de Michelle apoiando Hillary Clinton em New Hampshire, mesmo este discurso ainda continha esta ideia de maternalidade heteronormativa. Como se o sexismo nos ultrajasse porque ele ofende nosso senso de decência, e não porque ofende nosso senso de justiça., do que mulheres e meninas merecem. Vimos isso acontecer de novo e de novo, esse foco na maternalidade patriarcal.

Mesmo quando não há misoginia, há tanto sexismo benevolente - na resposta aquela coisa de "pegar ela pela buceta", os homens expressaram seu ultraje sobre o incidente dizendo coisas como "poderia ter sido uma coisa dita sobre suas esposas ou filhas". Para mim, isto é tão problemático quanto a objetificação sexual que eles estavam denunciando.
E isto reforça uma visão heteronormativa de decência, não um argumento poderoso e apaixonado por justiça e pelo que nós nos posicionamos como pessoas que advogam uma política feminista. Que não é sobre você ser uma mamãe ou não, é sobre toda a questão de se podemos ou não existir sem sermos vistas como cidadãs de segunda classe. Esta visão heteronormativa da parentalidade é parte disso.

Para onde vamos daqui? Que conselho você dá a feministas que querem esmagar o patriarcado?
Eu acho que temos que restaurar o feminismo como um movimento político. O desafio ao patriarcado é político, e não é um estilo de vida ou identidade. É como se tivéssemos que voltar à educação mais básica sobre consciência crítica, sobre o que uma política feminista visionária realmente é. E vamos encarar: política feminista visionária não é sobre ter uma mulher presidente. É sobre ter uma pessoa de qualquer gênero que entenda profundamente e completamente a necessidade de se ter repeito pela presença corporificada de homens e mulheres, sem subordinação.

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