sábado, 4 de janeiro de 2020

Bacurau e The Word for World is Forest

Como eu escrevi antes no Facebook, a questão toda é a falta de curadoria na minha vida. Mas isso tem seus pontos positivos, creio eu. Numa atitude bricoleur - expressão pela qual nós, pessoas da antropologia descendentes de vovô Lévi-Strauss temos afeição - coisas de naturezas muito diferentes se justapõem. E, como eu não sou crítica literária nem nada, posso me permitir escrever na forma de um relato de si o que andei pensando sobre minhas justaposições.
Tudo começou com um impasse ético sobre se e como fazer um relato - cujo teor não cabe no Fofocabook - e qual a verdade possível nele. Como meus livros finalmente chegaram a Rio Branco, fui pedir ajuda à Judith Butler no "Relatar a si mesmo: crítica da violência ética", um livro que eu havia começado a ler em 2017, mas não tinha terminado. Foi uma leitura demorada, pelo tanto que me pôs a pensar, não apenas na minha questão original, mas também nos grandes tramados da minha vida reencontrados ao estar junto da família para passar o Natal. Como quem leu o livro sabe, Butler começa a discussão por Adorno e a questão da impossibilidade da universalização moral, trazendo então Nietzche e a ideia da gênese do relato de si em uma cena de acusação. Uma das coisas deliciosas do livro é que os autores examinados a fundo por Butler: Adorno, Nietzche, Laplanche, Lévinas, Foucault, tem sua crítica construída sobretudo a partir do diálogo com autoras mulheres, algo que não é explicitado nem por Butler, nem no posfácio do Safatle que acompanha a edição brasileira.
Bom, pensando em algumas coisas que eu li e nas que causavam meu impasse, achei por bem procurar o velho Dante Alighieri, que eu afinal nunca havia lido. Lá na casa da minha avó havia uma edição da Divina Comédia em prosa, que pertencera a meu pai, e uma edição em versos apenas do Inferno, que pertence ao meu irmão. Melhor ler em versos, ainda que sem o Purgatório e o Paraíso. Dante, acompanhado do poeta Virgílio, envereda-se pelos diferentes círculos do inferno narrando a si e aos outros, julgando assim a Florença que o desterrara e personagens de narrativas clássicas e medievais. A edição que eu lia estava repleta de notas, auxiliando a entender as referências de Dante e tecendo comentários sobre a tradução. E, afinal, parte do meu problema ético sobre o relato tem a ver com certos limites tradutórios.
Coincidentemente, eu estava em outro momento tentando apagar arquivos do celular e liberar espaço, porque o bichinho está deveras sobrecarregado. Achei por lá o The Word for World is Forest, novela da Úrsula Le Guin que eu havia baixado em janeiro de 2019 e também não havia terminado de ler, porque o arquivo sumira e eu acabei esquecendo. Na época, lia-o acompanhado da leitura de A Queda do Céu, do Davi Kopenawa, porque os dois livros estão em franco diálogo sobre a devastação do colonialismo e a incapacidade dos brancos/terráqueos de sonhar. Deixei Dante e Virgílio na casa do meu irmão em São Paulo e fui para o planeta-floresta.
The Word for World is Forest conta de um planeta em processo de colonização pelos humanos vindos da Terra. O planeta Terra não tem mais florestas ou árvores, é como Coruscant em Star Wars ou Trantor, da Fundação de Isaac Azimov. Athshe, o planeta colonizado, é inteiramente recoberto por florestas e os terráqueos chegam justamente para extrair madeira, commodity valiosíssima. O personagem que nos introduz ao mundo é uma espécie de bandeirante do espaço, Comandante Davidson, que se relata como aquele capaz de domar o planeta "New Tahiti" com virilidade, subjugando os creechies, os nativos do planeta. Estes, na visão de Davidson, seriam quase animais, inferiores em tamanho e intelecto, pouco capazes de sentir dor ou esboçar reações, uma vez que são absolutamente não-violentos. Outro agente colonial é o antropólogo Raj Lyubov, que passou um tempo nas aldeias dos nativos athsheans, sobretudo com um colaborador nativo chamado Selver. Lyubov e Selver ensinam-se suas línguas mutuamente e apresentam um pouco de suas respectivas culturas. Selver também tenta ensinar Lyubov a sonhar, uma habilidade que os Athsheans desenvolvem desde criança e que constitui um de seus domínios de existência, uma vez que o sonho e a vigília (o tempo-mundo) são igualmente verdadeiros e habitados.
A trama se desenrola quando Davidson retorna à base e a encontra destruída. Davidson é subjugado por quatro Athsheans, incluindo Selver, que é reconhecido pelas cicatrizes que Davidson lhe deixara. Sabemos então que Selver algum tempo atrás fez algo nunca feito pelos seus, atacou Davidson, após este ter estuprado e morto sua esposa. Nesse primeiro ataque, é Lyubov quem salva Selver. Selver então vaga pela floresta até encontrar uma aldeia de seu povo e pode então relatar a destruição das aldeias, a escravidão brutal dos Athsheans e a derrubada da floresta. Após alguma discussão, os Athsheans entendem que Selver fez algo novo, um gesto de violência, o que o torna um Deus/tradutor. Sua história é espalhada pelas aldeias Athsheans.
Seguindo a temporalidade do Ciclo Hainish da Úrsula le Guin, chegam notícias à colônia de que a Terra se tornou parte da Liga dos Mundos, e emissários humanos de outros planetas chegam a Athshe, trazendo o ansible, uma tecnologia de comunicação instantânea pelo espaço que supera a lacuna de 27 anos de distância entre a Terra e o planeta colonizado. Segundo as novas leis, Athshe não pode mais ser colonizado e os escravos devem ser libertados. Davidson se rebela e reúne alguns homens para retaliar os nativos. Lyubov tenta reestabelecer contato com Selver, mas é rechaçado. Selver lidera um ataque massivo contra a vila central dos terráqueos. As mulheres são mortas, Lyubov também, os homens levados a um campo de prisioneiros e, depois do pacto feito com as novas autoridades, deixados em uma área desmatada para viverem até que uma nave os venha buscar. Davidson continua atacando, até ser capturado e deixado em uma ilha cujo desmatamento impossibilitou o renascimento da floresta.
O livro termina com a conversa entre Selver, não mais um Deus/tradutor, e um dos emissários que vieram buscar os terráqueos. Selver entrega as pesquisas feitas por Lyubov e o emissário pergunta se homicídios passaram a ocorrer entre os Athsheans, uma vez que eles aprenderam a matar os seus. Selver responde que se algo é trazido da dimensão do sonho para a dimensão do mundo, não é possível faze-lo voltar para o sonho. Entende-se aqui porque a palavra para Deus e tradutor é a mesma, como aquele ser que traz de uma dimensão a inovação para outra. A violência adquirida como conhecimento/habilidade pelos Athsheans não é uma descoberta ou invenção (esses modos de conhecimento ocidentais) ou a perda da inocência, a queda de um paraíso edênico (outro tropo bem ocidental para falar dos bons selvagens), é uma operação tradutória a partir do contato com aqueles que definem seu planeta pela Terra, e não pela Floresta. Esta outra ontologia desloca uma série de questões sobre a violência ética que Butler estava discutindo, o que veio ao encontro da minha principal indagação sobre o livro "Relatar a si mesmo" e suas reflexões sobre a alteridade, a ética do "quem és tu?" que Butler propõe como reconhecimento recíproco da vulnerabilidade. O quanto a discussão toda sofre de certo ensimesmamento, paradoxalmente, quando não traz o diálogo com noções de pessoa que de partida não pressupõem um indivíduo autoidêntico, uma discussão forte na antropologia pelo menos a partir de Marcel Mauss e que marca todo o campo americanista, melanesista e o que estuda religiões de matriz africana, possessão etc.
Aí então, já em São Paulo com meu irmão e cunhada, fomos assistir Bacurau, cujo torrent eu passara meses procurando, mas quando o consegui, não tive muito pique de ver. Foi ótimo assistir em companhia deles, que não sabiam a trama de antemão (suas timelines são menos esquerda ostentação que a minha). Bacurau é a cidadezinha no oeste de Pernambuco, cujos habitantes vivem forte relação comunitária mas também certos conflitos, e que tem um prefeito absolutamente cínico e oportunista que sequestra seu acesso à água enquanto lhes oferece migalhas - remédios e alimentos vencidos, livros desconjuntados despejados na praça. Bacurau, se não tem o sonhar dos Athsheans, tem certos narradores:o violeiro, o dono do carro de som com telão, sobretudo o tal museu histórico, personagem importante da trama. O filme começa com a chegada de uma moça a Bacurau, trazendo vacinas de carona em um carro pipa no alto de uma barragem. Este carro desvia-se de caixões pela estradas, caídos de um carreto acidentado. Chegando a Bacurau, um velório tem lugar, segue o cortejo musical pela falecida, matriarca da cidade, com algum protesto bêbado de dona Domingas, a médica da cidade.
Bacurau sumiu do mapa, e saberemos que isso foi orquestrado por um grupo de gringos que escolheu Bacurau para campo de caça, em um jogo em que se ganha pontos por matar os menos-que-humanos com armas vintage. Além do prefeito que vendeu a cidade para eles, como descobrimos no final do filme, os gringos são auxiliados por um casal do sudeste, que tenta participar do jogo e da branquitude dos gringos sem sucesso, e também acaba sendo morto.
Após as primeiras mortes, os habitantes de Bacurau chamam Lunga, procurado pela polícia e uma espécie de guerrilheiro local. Lunga é quem ainda detém a habilidade da violência e pode assim organizar a defesa de Bacurau. As armas estão no museu histórico, armas antigas que são o legado cangaceiro e colteiro do sertão, não o fetiche dos gringos. Lunga é capaz de resgatar a memória da luta em situação de perigo - em um lance absolutamente benjaminiano - e os habitantes de Bacurau conseguem assim matar os invasores, deixando suas cabeças na escadaria da igreja junto aos caixões que guardam seus próprios mortos. O chefe dos gringos é deixado em uma cela subterrânea e o prefeito é vestido com uma máscara monstruosa e enviado nu para morrer no ermo. Errou feio quem comparou o filme a um Tarantino, em Bacurau não há o menor gozo pela violência (com exceção dos gringos), mesmo a cena em que o povo filma as cabeças com celular tem a ver antes com a propagação da memória e da narrativa.
A justaposição improvável e imprevista entre Bacurau e The Word for World is Forest para mim se deu precisamente por esta aquisição da violência como habilidade em um contexto colonial. Em um caso, algo trazido do contato e materializado no mundo por uma tradução do sonhar. Em outro, como uma memória que irrompe e revigora a resistência. Em um caso, em um futuro da Terra que é ao mesmo tempo seu passado, dada a distância entre os planetas que só agora conseguem se comunicar de forma instantânea e a persistência de certos caráteres e práticas de desumanização e despossessão. Em outro, em um futuro do Brasil que é o que sempre foi, mas tem dificuldades de se lembrar, de se comunicar com seu passado. Em ambos, uma figura chave de transformação, Selver, Lunga, com habilidades tradutórias entre mundos sem com isso se render a nenhum tipo de sebastianismo (Selver deixa de ser Deus/tradutor, Lunga é Lunga, não é o chefe de Bacurau, se não na guerra). E, como disse o Leandro Durazzo, um ponto de ruptura, em que as coisas passam a ter novas possibilidades.
Nessa mesma chave, é possível continuar listando pontos de simetria, e comparar por diferenças e contiguidades, e não por semelhanças e igualdades, é muito valioso. Eu, que tenho certa obsessão pela discussão da violência como linguagem, peguei-me nesse encontro entre a novela escrita por Úrsula le Guin em 1972, à luz da Guerra do Vietnam, e do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles de 2018.
Daí, o papo continua.