domingo, 4 de dezembro de 2016

Algumas coisas sobre 3%

3% traz certa alegria para meu coração nerd. Uma iniciativa brasileira de produzir uma série distópica, assumidamente pertencente ao gênero da ficção científica, com suporte da Netflix e elenco global, traz ventos frescos para as nossas possibilidades narrativas no campo da teledramaturgia.

3% foi feita a partir de um roteiro escrito por alunos da USP, e teve episódios piloto lançados como websérie, para conseguir atrair atenção para uma produção mais substantiva. Conseguiu. Um dos diretores de 3% é César Charlone, que participou da equipe de Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira. Algo da estética desses filmes é reconhecível nos episódios de 3%, em que a visualidade muitas vezes salva o argumento fraco.

3% começa em marcha pelas ruas. Estamos no Continente, o Lado de Cá. Não sabemos de início se estamos em uma favela ou em algum cenário pós conflito. É difícil discernir entre construções vernaculares com materiais baratos e escombros de antigos prédios. Corpos brancos e negros seguem, em desmazelo, sujos e vestidos de farrapos. Mas algo da família e da comunidade se apresentam. Abraços das mães aos filhos que vão. Um pastor colorido que prega a salvação, com um manto de retalhos coloridos. Uma louca no sopé do morro que leva ao processo, quase uma versão de Arthur Bispo do Rosário. Ela não assume o papel de enunciar a Verdade sagrada dos loucos, contrapondo-se à loucura institucional desse futuro. Ela é o resto do processo, a amaldiçoar aqueles que saem em jornada, o Velho do Restelo que amedronta aqueles jovens em busca do caminho para o Maralto, terra utópica para onde vão os 3% que serão selecionados no Processo. Ao Processo se contrapõe a Causa, apresentada nos termos em que se representa a resistência armada à Ditadura Militar. Células escondidas, comunicações cifradas, palavras de ordem nos muros diante de um povo calado e iludido com promessas vazias de ascensão. Vazias?

Conforme os protagonistas sobem a longa ladeira rumo ao complexo em que se dá o processo, vemos o rochedo molhado de água de alguma nascente à qual a população não tem acesso. O rochedo parece uma muralha que represa os recursos daqueles que vivem nos escombros. É interessante pensar como a imagem do Muro tornou-se mais uma vez forte nos tempos em que vivemos, de Gaza aos desvarios de Trump, ou a Guerra dos Tronos. Mas o Muro de 3% leva a um planalto, em uma cartografia hierárquica que inverte a relação morro-asfalto do Rio de Janeiro.

A arquitetura do complexo do Processo, bem como seus uniformes, realizam o trabalho disjuntivo e traem a ideologia igualitária pregada para aqueles que teriam por mérito sido selecionados. Ângulos quebrados, volumes assimétricos em padrões geométricos, nas roupas e ambientes. Há certo anti-modernismo escancarado. A primeira prova é constituída por uma entrevista em que fica claro certos favorecimentos. Os entrevistadores visualizam projeções de indicadores de aptidão enquanto avaliam os candidatos, em padrões arbitrários travestidos de ciências comportamentais. Impossível não pensar em entrevistas de emprego, em triagens empresariais, trainees, coaching, toda essa cosmologia empresarial que parece tão determinante de dentro e tão absurda de fora. O seriado tenta imprimir um certo automatismo cínico, ao apresentar a fórmula do modo de lidar com o trauma da eliminação, dito aos rejeitados, que pouco sabem o que lhes acontece. Mas este é um dos pontos em que a fraqueza do texto compromete o resultado. A verossimilhança cai por terra quando candidatos e funcionários do processo usam o mesmo vocabulário, pensam do mesmo modo que os candidatos criados na privação, e a hierarquia que deveria ter se incorporado como habitus tem que ser afirmada no conteúdo das frases.

É uma pena, porque este é o momento em que 3% tenta individualizar suas personagens, indicando as idiossincrasias de cada um que acabam sendo premiadas nessa etapa do Processo. O ar non chalant de Joana (a moça safa das ruas), o fanatismo de Fernando (o cadeirante que supera suas limitações), a tranquilidade soberba de Marco (de uma família que tradicionalmente é selecionada, como os jovens de elite que fazem vestibular na FUVEST), o nervosismo treinado de Michele (a heroína da Causa, em busca de vingar a morte do irmão), a amoralidade de Rafael (que trapaceia desde o registro falso implantado atrás da orelha). Em muitas narrativas que assumem este ar de deep play e dark play, onde os jogos assumem um caráter de vida ou morte, é a combinação de diferentes habilidades que rege a dinâmica das etapas percorridas. 3% hesita em assumir esta lógica, porque busca mostrar a arbitrariedade da seleção, sujeita aos humores do diretor Ezequiel, premido pelo orgulho e pela culpa pelo suicídio da mulher e que infringe as próprias regras tentando cuidar do filho dela deixado para trás. Ezequiel não consegue ser nem o fanático autoritário carismático, nem o burocrata astuto, nem o líder alquebrado. É reativo lidando com as armadilhas da fiscal e rival Aline, que também não consegue demonstrar a astúcia necessária a esta posição na narrativa. Os atores fraquejam, desambientados.

Por outro lado, há cenas extremamente bem sucedidas. O episódio 4, Portão, mostra os candidatos, após haverem superado algumas provas, em um ambiente de confinamento, sem água ou comida. Marco assume a organização de times que manipulam coordenadamente alavancas que liberam os suprimentos, produzindo um igualitarismo concertado dos recursos. Mas o desenho da prova é alterado por Ezequiel, e os candidatos são tornados impotentes. É então que Marco forma uma gangue e passa a espancar e roubar os mantimentos dos outros candidatos, com a justificativa de que a prova quer este tipo de liderança "darwinista". É uma imagem familiar. É o presídio virado, é o campo de concentração de Ensaio sobre a Cegueira, é aquilo que os acadêmicos vão chamar de banalidade do mal. Mas, mais interessante do que a opressão dos fracos entre si, é esta nota sobre a mudança das regras pelo diretor Ezequiel. Essa certeza de que não se pode confiar em instituição alguma, porque as regras são arbitrárias e mudam a todo momento. Em síntese, é o nosso estado de exceção permanente.

Um estado que supostamente só deveria existir no Lado de Cá, no Continente, varrido também por gangues. Joana bem fala que não quer lidar com essa porra, pois já lidava fora do ambiente racionalizado ascéptico do complexo do Processo. As cenas de flashback em que Joana foge da gangue e é por eles agredida tem por objetivo elucidar porque Joana falsificou o registro para entrar no Processo, mas nos contam outra coisa. 3% apresenta uma organização social em que a desigualdade é nivelada por uma clivagem geracional. Todos abaixo de vinte anos vivem no Continente, com as mesmas precariedades, selecionados pelo mérito no Processo. As diferenças explicitadas falam sobre a perda da família e de uma rede de apoio anterior ao processo, mas não se fala em raça, classe, gênero. O que nos fala disso são os corpos. Não é a toa que o pseudo-aristocrata Marco seja interpretado pelo ator loiro. Que Joana, interpretada por uma atriz negra, rendida por uma gangue de homens brancos, seja colocada em uma posição que beira o estupro. Que os heróis ideológicos da causa sejam dois brancos, enquanto os dois negros vivem pela astúcia e tenacidade dos sobreviventes. O silenciamento dos marcadores sociais da diferença é ostensivamente artificial, e as palavras do roteiro são traídas pelas imagens.

Os dois episódios finais tentam produzir reviravoltas. Subversivos que se rendem, quando Michele submetida à tortura parece crer que a Causa é uma mentira, Joana que se recusa a assassinar e é rejeitada, volta para o Lado de Cá e revela simpatia pela causa. Mas o ponto mais importante é que para ir à utópica Maralto, é preciso ser estéril, porque a herança e a hereditariedade também perturbariam o mérito. Mas, lembrando que é recomendado aos candidatos eliminados que eles recuperem a alegria e os motivos para viver tendo filhos, o que se percebe é uma terrível divisão do trabalho reprodutivo, em que os pobres produzem corpos para que os ricos os selecionem. Esta política demográfica e sua justificação ideológica, diante de tantas políticas eugenistas que marcaram a história do Brasil, é o que merece aprofundamento, caso haja uma nova temporada.

2 comentários:

  1. Muito boa sua análise! Qual sua opinião sobre a reviravolta em relação aos quatro personagens principais? A da Joana foi a que eu achei mais difícil de acreditar, dada a natureza sobrevivente da personagem. A do Fernando, sempre tão inteligente, também não me agradou.

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    1. Então, acho que são problemas de roteiro mesmo, de não saber mostrar sutilezas.

      Joana pode perfeitamente ser sobrevivente e desconfiada, roubar na prova da moeda, mas se recusar a matar um homem indefeso, ainda mais quando isso significa submissão a uma autoridade ilegítima. De certa forma, ela não acreditava que passaria no Processo, só queria sumir do radar. E isso funcionou.

      Michele é uma personagem mal construída. Ora ela age de modo frio e calculado, quando sacrifica a amiga para não se revelar logo no começo, ora age de modo descontrolado, como em seu plano tosco para matar Ezequiel e as cenas seguintes. De resto, sentir-se traída e manipulada pelo agente da Causa, que substituiu seu irmão como figura paterna (substituta) e render-se depois de tortura a Ezequiel parece fazer sentido. E talvez ela continue seguindo a causa do lado de lá.

      Fernando foi tolo, mas também fez sentido. Ele deu a chave para sua própria derrota na última prova. E ficou claro que se desiludiu com o Processo e a pregação de seu pai, entre a possibilidade de curar sua paralisia e ser aquele que supera sua condição, dentro de toda uma matriz de inferioridade que criam em torno dele. Então se apegou à Michele, porque ele queria ser amado.

      Rafael não passou por nenhuma reviravolta. O anti-herói que se revela da Causa e vai até o final, com um sacrifício pessoal. Bateu.

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