Por Leonardo Bertolossi
(guest post)
A
antropologia como pensamento e disciplina ocidental em seu gosto pela
diferença, se assenta e se constitui na confluência entre a oralidade do saber
nativo e a experiência do trabalho de campo produzido pelo antropólogo, e sua
inscrição e tradução no texto etnográfico. É nessa economia relacional em suas
tensões e contradições que se constitui a magia antropológica como uma teoria vivida.
A
antropologia nasce nos museus, é filha do universalismo enciclopédico
iluminista e do nominalismo romântico. Em sua pretensão metodológica de ser
científica e se afastar da literatura de viagens, a antropologia abandonaria os
gabinetes e sua dependência do registro de funcionários coloniais do Estado
imperial nas colônias para fundir na persona do antropólogo em campo e sua
avaliação em primeira mão a dimensão empírica e existencial que conformou a singularidade da aventura
antropológica como um saber disciplinar.
É
atribuído à Bronislaw Malinowski (ao lado de Franz Boas) a invenção do moderno
trabalho de campo. Influenciado pelos paradigmas positivistas e cientificistas
das ciências naturais, Malinowski preconizara ser possível traduzir o pensamento
nativo. Ao antropólogo em pesquisa de campo deveria ser realizada esta tarefa
da tradução através da observação participante. Malinowski destacou a importância da observação da estrutura
social, da cultura e do ponto de vista nativo, para ele o espírito desta
mentalidade, o que estaria presente na vivência cotidiana e nos “fatos
imponderáveis da vida real”.
Se
Malinowski foi o responsável pelo moderno método do trabalho de campo com
pretensão científica, E. E. Evans-Pritchard viria a destacar a irreprodutibilidade
de cada campo antropológico através dos percalços e das afecções que cada
antropólogo vive em seu trabalho de campo. Tal qual uma “ciência nômade”, o
trabalho de campo envolve variáveis imprevistas, demanda tempo e sensibilidade.
Evans-Pritchard já sugeriria o “devir-nativo” recuperado posteriormente pela
antropóloga Jeanne Favret-Saada, ao dizer que o antropólogo em campo vive entre
mundos. Evans-Pritchard sugere que o antropólogo vá sozinho paras o campo, que
se comporte como um cavalheiro e não como um idiota. Se o olho da razão é
instrumento do trabalho de campo em Malinowski, o corpo feixe de sentidos e
afecções é destaque em Evans-Pritchard.
Malinowski prêt-a-porter num embate
com um nativo melanésio desavisado e um tanto blasé.
|
Influenciado
pela tradição antropológica britânica, o brasileiro Roberto DaMatta viria a
defender que o trabalho de campo é um ritual de passagem para todo antropólogo,
onde acontece o “anthropological blues”. Caberia, portanto, ao antropólogo,
afirma DaMatta, transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico.
Problematizando as fronteiras de pertencimento do eu antropológico em campo,
DaMatta destacaria a dimensão posicional e não essencial das diferenças ao
diferenciar o íntimo do familiar, por exemplo.
Posteriormente,
Clifford Geertz problematizaria o trabalho de campo como lócus da identidade
antropológica ao revelar em “A Situação Atual” a profusão de historiadores,
geógrafos, economistas e psicólogos realizando trabalho de campo em um mundo
cada vez mais globalizado, interdisciplinar e desterritorializado. No esteio da
problematização do trabalho de campo,
crítico de arte Hal Foster em “O artista como etnógrafo” questionaria o
uso indiscriminado e irrefletido do trabalho de campo pelos artistas na
produção de uma alienação do outro produzida através de superindentificações
sem questionar o distanciamento necessário ao trabalho do antropólogo.
Recentemente
a antropologia contemporânea vem reafirmando criticamente o trabalho de campo
antropológico. Bruno Latour ao mesmo tempo em que questiona a centralidade do
indivíduo nos métodos da antropologia (algo posto em questão por antropólogos
da Escola de Cultura e Personalidade que faziam trabalho de campo
coletivamente), Latour sugere que os antropólogos sigam os “atoreselesmesmos”
em suas redes transhumanas.
Mas
como reter e traduzir o ponto de vista nativo de que falava Malinowski, os
fatos sociais totais de que fala Marcel Mauss, a fim de garantir a ciência
social do observado que falava Lévi-Strauss? A objetificação da polissemia e da
polifonia encontrada pelo antropólogo em campo se daria pela etnografia.
A
etnografia fundaria o saber antropológico científico e também a autoria, a
autoridade e a autenticidade do antropólogo. A edição dos relatos escritos,
desenhos e fotografias presentes nos diários de campo, nos cadernos
antropológicos, se daria através de uma miríade de experiências distintas. Em
seu “Manual de Etnografia”, Marcel Mauss sugere a inscrição das experiências
nativas em níveis distintos como o parentesco, a vida religiosa e ritual etc.
Em sua teoria sobre a cultura, Malinowski também enfocaria a vida nativa em
macroestruturas. Outras etnografias, no entanto, se constituíram a partir dos
encontros do antropólogo com seus nativos, como a famosa etnografia de Evans
Pritchard sobre a magia e os oráculos dos Azande. Muitos antropólogos
conciliavam em sua vasta produção uma etnografia mais impressionista e próxima
dos informantes nativos, e outras preocupadas com as macroestruturas e suas funções,
sem a presença visível de indivíduos no texto etnográfico.
Dentre
diversas etnografias importantes para a tradição clássica da disciplina,
“Tristes Trópicos”, de Claude Lévi-Strauss, atingiu uma repercussão inesperada
e se tornou best-seller fora dos círculos acadêmico-intelectuais da França.
Misto de autobiografia, literatura de viagens e etnografia, “Tristes Trópicos”
retrata também as agruras e o tédio do antropólogo em campo. O livro seria
problematizado posteriormente por Clifford Geertz em “Obras e Vidas: O
Antropólogo como Autor”.
Lévi-Strauss numa crise existencial e uma tristeza profunda entre os Caduvéu e os Nambiquara no Brasil. |
E
é Geertz quem iniciará um verdadeiro Raio X na antropologia, segundo Michael
Taussig, ao questionar as ambições cientificistas da disciplina e destacar a
intervenção do antropólogo na vida nativa. Geertz retira a cultura do cérebro e
assenta no texto, entendendo a relação entre antropólogo e nativo em campo como
uma conversação e interpretações recíprocas. Se a cultura é um texto
interpretado diferentemente por cada nativo, a etnografia é uma interpretação
de interpretações. Geertz se propôs também a encarar a produção etnográfica
como um campo antropológico tendo analisado a escrita de diferentes antropólogos
e seus diferentes estilos.
Alunos
de Geertz, como James Clifford, viriam a acentuar a autocrítica antropológica
que se deu sobretudo nos anos 80 ao questionar as políticas e as poéticas de
representação textual antropológica em “Writing Culture”. Clifford, dentre
outros antropólogos, criticaram a economia textual da etnografia como alegorias
mantenedoras das relações de poder e do colonialismo “kármico” da disciplina. O
“estar lá” da antropologia no at home entra em suspeita, há a crítica da
cultura como estereótipo e estigmas colonialistas no texto, a etnografia é
associada às colagens da estética surrealista e ao gosto primitivista desta
vanguarda artística.
Uma
profusão de intelectuais latinos, africanos e asiáticos viria a questionar a
autoria, a autoridade e autenticidade da etnografia como projeto político e
científico antropológico. Se Marcus e Fischer defenderiam a antropologia como
crítica cultural e auto-reflexividade a partir do encontro com a diferença,
Nicholas Thomas e Lila Abu-Lughod escreveriam contra a etnografia, questionando
qual o lugar da etnografia num mundo transnacional e repleto de dissemi-Nações
culturais, termo usado por Homi Bhabha.
Como
alternativas ao mal-estar e à melancolia das críticas pós-modernas e
pós-coloniais surgiram uma variedade de etnografias experimentais reenquadrando
e reencenando o texto antropológico em boxes, metade da página apenas com
reproduções do discurso nativo, metade da página com as interpretações
antropológicas. Imagens fotográficas foram problematizadas, assim como o texto
museográfico dos antigos museus de onde a antropologia surgiu. Como estratégia
pós-colonial combativa aos silenciamentos, invisibilidade e colonizações
históricas, “dar voz ao nativo” se tornou a ordem do dia. O “retorno do nativo”
de que fala Adam Kuper produziu também a “indigenização ocidental” e
antropológica de que fala Sahlins. O animismo e certo neoromantismo ambiental e
corporal voltaram à cena nos anos 90, indígenas norte-americanos e canadenses
se tornaram curadores de museus, produziram arte contemporânea, adentram cada
vez mais os programas de pós-graduação em antropologia e produzem a sua própria
auto-antropologia.
A
etnografia foi, portanto, se transformando ao longo da história da disciplina.
Evitando estar associada à literatura de viagens, a etnografia foi enquadrada
em imaginações científicas e experienciais, era matéria-prima descritiva para
posteriores análises etnológicas, passou por um intenso raio X pós-moderno e
pós-colonial, e teve seu efeito capturado pelos antigos nativos agora
porta-vozes de seus próprios discursos etnográficos como as ficções persuasivas
eficazes de que nos fala Marilyn Strathern.
E
qual o estatuto e a localidade do relato oral na encruzilhada política e
epistemológica da antropologia? É importante evocar aqui a relevância a
proeminência da oralidade e do discurso em nossa própria antropologia nativa
ocidental e suas matrizes cosmológicas judaico-cristãs. Das revelações da voz
divina bíblicas até as confissões cristãs e psicanalíticas, a oralidade encarna
a presença do invisível e tem estatuto de verdade. Antes da burocratização do
mundo ocidental e sua conversão fetichista-patrimonialista em uma sociedade do
papel e do arquivo, os acordos jurídicos e legais na Idade Média eram
realizados oralmente.
O
outro exótico que interessou a antropologia clássica como disciplina
oitocentista e filosofia ocidental fora visto como selvagem e bárbaro antes de
ser considerado primitivo, revela Adam Kuper. Sob o signo da falta o outro
selvagem – como o Caliban da Tempestade de Shakespeare – sequer conseguia
articular uma fala compreensível, diziam os seus colonizadores europeus. Seus
grunhidos e sons guturais estariam fora da ordem do discurso, se pensarmos com
Michel Foucault. Coube ao antropólogo moderno, após a primeira crítica ao
narcisismo ocidental em “Os Canibais” de Montaigne, de recuperar a fala nativa
e sua verdade.
O
relato oral e o saber nativo foram vistos no alvorecer da disciplina
antropológica como crença e pensamento pré-lógico por Lévy-Bruhl, fora
positivado como pensamento selvagem por Lévi-Strauss, um pensamento humano. Se
os evolucionistas entendiam a oralidade nativa como índice de uma mentalidade
irracional, e se a antropologia cognitiva contemporânea ainda o concebe como
“aparentemente irracional”, representação semi-proposicional, Lévi-Strauss
destacou que todo pensamento é relacional, associativo, classificatório e
simbólico independente da versão/variação cultural escrita ou oral em que se
manifeste. Influenciado pela psicanálise, pela linguística e pela geologia,
Lévi-Strauss vai sugerir que as erupções orais nativas tem inteligibilidade e
discurso, e expressam um inconsciente humano estruturado como linguagem.
Após
a positivação da oralidade discursiva nativa, a apropriação do antropólogo da
mesma foi posta em questão. A polifonia e a polissemia discursiva encontrada no
campo deveria ser traduzida pela ventriloquia antropológica de que maneira?
Ampliar os horizontes narrativos, como sugeriu Pina Cabral? Evocar equivocações
e entender a voz nativa como filosofia outra, conforme Viveiros de Castro?
Observar o que eles dizem mas também o que eles fazem, conforme preconizou
Eunice Durham?
E
como os antropólogos devem entender e se relacionar com as vozes nativas
performativas e refletivas em situações interétnicas como a invenção de etnias
que fala Fredrik Barth, e a cultura com aspas de que fala Manuela Carneiro da
Cunha? Quais impactos nas diferenças culturais intensivas da invenção de uma
oralidade nativa performativa-identitária diante do Estado?
Margareth Mead curtindo um devir nativo com as nativas-informantes-amigas de Samoa |
Ainda
no âmbito das questões pós-modernas e pós-coloniais, Talal Asad fez uma
importante crítica à pretensão dos antropólogos de objetivarem o discurso
nativo numa totalidade redutora e estereotípica, uma fixidez racista diria Homi
Bhabha. E como considerar as diferenças orais nativas como desigualdades
interseccionais e suas totalizações essencializadoras estratégicas? Qual o
lugar do antropólogo diante do nativo, mas também informante, interlocutor e
até “amigo”, para alguns antropólogos? Como evitar reificar a oralidade nativa
como discurso da diferença e considerar as fronteiras frágeis dos grandes
divisores; assim como o contágio na persona do antropólogo das
contra-interpretações nativas, de que fala Roy Wagner?
Stephen Tylor na escrita
histérico-compulsiva e nativo com preguiça da tara antropológica ao fundo.
|
Visualidade,
oralidade e a escuta mobilizaram antropólogos em seus encontros com a
diferença. Enquanto historiadores orais purificam a subjetividade da oralidade
dos depoimentos obtidos, diferenciando história e memória, qual a distância ou
proximidade de os antropólogos, agora às voltas com as naturezas do corpo
nativo e suas habilidades no ambiente e na vida, devem ter diante da fala
nativa? Se a antropologia não é a fala branca, cisgênero, heterossexual,
ocidental moderna da antropologia e tampouco é “dar voz ao nativo” e dormir com
a consciência tranquila e uma etnografia sem crítica, é uma teoria do encontro
e da fantasia da comunicação e da tradução plena? Estes impasses e angústias
persistem como fantasmas das fantasias e ficções das antropologias em curso
entre campo, voz nativa e etnografia.
_______________________
P.S: Esse texto é uma prova escrita realizada para o concurso de professor do magistério superior de teoria antropológica da Universidade Federal Fluminense. Fotografei a prova ao pedir para ver a nota da banca e cogitei pedir revisão, mas desisti. O concurso teve 61 candidatos inscritos concorrendo para uma vaga, 32 estiverem presentes e apenas 13 realizaram a prova didática. A nota de corte era 7 e eu obtive uma média de 6,6 dos cinco avaliadores. Esse ponto de prova (trabalho de campo, etnografia e relato oral) e outro (sistemas de conhecimento e antropologia da educação) não constavam no edital e foram acrescentados na hora da prova, a despeito do questionamento dos candidatos. Este é um tema de domínio de todo antropólogo e causa estranheza que apenas de 13 candidatos tenham obtido notas acima de 7 (na média dos cinco avaliadores ou na maioria das notas emitidas?), tanto que um pedido de recurso na nota levou a uma reclassificação significativa. Ao contrário do que preconizava a antropologia mencionada acima, com seus ideários bem intencionados e benevolentes, na antropologia universitária dos concursos o outro é um eu meritocrático, avaliado por uma banca através de um concurso obscuro e com regras e critérios nada transparentes.
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