sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Nota sobre o after party da democracia

Estou em Santos, onde resido. Pelo menos segundo meu domicílio eleitoral. Foi aqui que nasci e onde mora minha família, onde está a maior parte de meus livros e parte considerável de minha burocracia. Título de eleitor, agência bancária. Tendo saído há mais de década, foi aqui que larguei as instituições, levando comigo só algumas poucas, tipo as religiosas, algumas acadêmicas, e um tanto de intuições sobre o fazer do mundo.

Digo isso porque entrei no cartório eleitoral da minha Zona para pagar a multa, deixe-me ver, de R$ 3,51 por não ter participado da última festa da democracia. Tampouco justifiquei no dia, porque precisava limpar a casa e regar as plantas, e ir pra praia, e faço votos de que isso seja sempre mais importante que o sistema de votos universais. Mas não pretendo utilizar este espaço para uma apologia ao voto nulo, vote nulo, mas sim para relatar o que ouvi.

Com a chuva do lado de fora, entrei no cartório enquanto um servidor passava o pano no chão da entrada. Ele me olhou quando abri a porta, eu sorri, dei boa tarde e ele de volta. Logo pedi o pano para não sujar o que ele acabara de limpar, e limpei meus pés. O servidor da Justiça Eleitoral largou o pano de chão e foi sentar detrás do balcão, e me atendeu.

“Vim regularizar minha situação, não votei nas últimas eleições. Nem lembro exatamente o procedimento, mas é aquela multa.”

“Aham.”

Enquanto isso, uma senhora chegava ao cartório e sentava no balcão ao lado, sendo atendida por um atendente bem menos simpático. Vacilando um pouco, ela disse “Oi, eu não votei na última eleição e...”

“E por quê?”

“É que... não estava na cidade.”

“Mas estava no país?”

“Sim.”

“Todos os cartórios atenderam as justificativas de ausência, no dia mesmo. Estavam todos abertos. A senhora deveria ter resolvido isso.”

“É. Eu... não justifiquei porque meu filho... na verdade eu precisei isso, aquilo e mais aquilo outro, aconteceu isso, aquilo e mais aquilo outro, etc”

 
A última fala, claro, não é uma transcrição fiel, mas acho que o espírito do encontro está marcado. Sem saber exatamente o que fazer por não ter votado, a senhora se colocou frente a uma autoridade que, sabendo bem o que faz em seu trabalho, resolveu reprimendar a senhorinha. Ela não estava em posição de afirmar sua autonomia, digamos, por não ter votado; aquele espaço era um reduto da democracia oficial, da instituição do Estado. Ela fora pega no erro, pelo menos assim pensavam ela e o atendente, e por ser pega no erro já chegou no balcão com a defesa tentativamente alta.

Enquanto isso, meu atendente e eu não trocávamos palavra, até porque ele em segundos preenchera meu formulário, imprimira a guia de pagamento e me dissera “Pague em qualquer caixa eletrônico, banco ou lotérica para dar baixa”, e eu saí antes de saber como a senhora continuaria, se é que continuaria, levando bronca da democracia.

Andei algumas quadras até a casa lotérica, paguei a multa com moedas no valor exato – na verdade, R$ 3,50, espero que o Estado não venha me cobrar um centavo – e voltei ao cartório. Tudo rápido, sem muita conversa, porque eu razoavelmente sei as peças que precisam ser mexidas nesse jogo eleitoral. Na parte que me cabe, claro.

De volta à Zona, só meu atendente continuava no balcão, a senhorinha havia ido embora, e o outro funcionário conversava com outros funcionários no fundo do salão. Entreguei a Guia de Recolhimento da União paga, sentei para esperar a declaração impressa e assinada, e aproveite para perguntar “Vocês vão fazer cadastro biométrico?”. O atendente fez que sim com a cabeça. “Já começamos, desde o fim de 2015 até o começo deste ano.”

Ensaiei um “Nem moro aqui” ou um “É que vivo viajando”, mas deixei pra lá. Ele continuou: “Uns 10% dos eleitores já fizeram. Por enquanto, é com agendamento. Marca-se a data, vem aqui e cadastra. É rápido.”

“E é obrigatório?”

“Ainda não. Mas é bom fazer logo, sabe como é brasileiro: quando for obrigatório, vai todo mundo vir correndo.”


Sei como é brasileiro. Pensei rapidamente no atendente foucaultiano passando um sabão na senhora anarquista, no próprio atendente que me atendia sabendo como é brasileiro, na obrigação do voto e da impressão digital. Há um controle pervasivo dos corpos, como sabemos, mas há também um controle pervasivo e sempre presente das mentes, das expectativas, do lugar ocupado por cada cidadão (sic) em toda cidade, vila, aldeia, em cada estado do Estado.

Diferente da senhora trêmula que se apresentava à democracia, naquela situação específica eu sabia o caminho das pedras, e a democracia que me atendeu sabia que eu sabia. Não havia jogo possível ali, a menos que ele realmente quisesse encrencar – possibilidade real, dados os pequenos e nem tão pequenos poderes – mas ele não quis. Simplesmente fez girar a máquina burocrática que me permite ser cidadão (sic) ao preço bienal de R$ 3,51.

“Precisa da declaração definitiva agora?”, ele perguntou. “Para tirar passaporte, algo assim?”

“Não, não preciso. Por quê?”

“Porque a certidão que estou dando é provisória. A partir de 09 de novembro, pelo site, você expede a definitiva. Para a Justiça Eleitoral, as eleições ainda estão em curso, por isso. O sistema ainda está aberto.”

Manifestações por democracia real na Espanha, 2011.

Saí de lá pensando que o sistema sempre estará aberto, por mais que atendentes da justiça façam parecer que não, por mais que façam parecer que há um muro além do qual não é possível seguir, que há cartórios panópticos abertos durante os pleitos, esperando cidadãos (sic) tremerem frente a avatares da democracia. Mas vocês sabem como é brasileiro: eu posso estar errado.

2 comentários:

  1. Estou feliz por você ter feito um post inteiro como narrativa em primeira pessoa. Andei com vontade de fazer isso também. Talvez o faça.

    Na última discussão sobre voto obrigatório de que participei, eu o defendia por considerar ser esta a única forma de obrigar os órgãos públicos a garantir a infraestrutura necessária (zonas eleitorais, mesários, transporte, etc.) para que todos possam votar. Mas a outra ponta disso é esta pequena microfísica do poder, ou como diz a Veena Das, o caráter mágico do estado, que se faz onipresente por mímese, até na bronca do pequeno funcionário.

    Passei quase a vida toda justificando o voto. Nunca equiparei isso a omissão política. Eu e a democracia temos essa amizade estranha, eu não vou às suas festas, mas tento defendê-la quando possível. E ela, que mal sabe que eu existo, tenta aí sobreviver.

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    1. Assim que publiquei o texto, pensei no relato de Mariza Peirano sobre a senhorinha que, num guichê, dizia não ter RG para apresentar, por nunca ter sido registrada ou algo assim. Depois de um tempo de suspense, o guichê pergunta: Nem passaporte?

      E a gente vai narrando, enquanto eles exercem seus pobres poderes.

      Gostei muito da tua defesa dessa obrigatoriedade, justamente pela argumentação da infraestrutura posta à disposição do povo. Acho algo bem importante de considerar, justamente pela reflexão sobre a não obrigatoriedade poder fortalecer ainda mais o voto impositivo, digamos, em contextos mais afastados dos centros urbanos. Acho que va!e um post :-)

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