sexta-feira, 12 de agosto de 2016

A ética da escuta e a poética língua viva

“Contarei, se você quiser ouvir, mas não se trata apenas de um conto. Há muitas coisas que não compreendemos, mas aquilo que sabemos de nossa história é verdadeiro.”

“Eu ouço”, Rolery murmurou, seguindo a fórmula ritual.

Ursula K. Le Guin – Planet of Exile

Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha. Dois ouvidos e uma boca, para ouvir mais que dizer. Escute a voz da experiência, o conselho dos mais velhos, escute seu coração. Parece que o grande repositório de conhecimentos populares, ditos que nunca se encerram, possuem muitas formas de nos dizer como proceder vida afora. Muitas maneiras de nos orientar no mistério constante do humano: de que modo viver?

Mas há modos de conhecer que distanciam as práticas do ouvir, cindindo, entre outras coisas, o ouvido do olhar. Tim Ingold indica, em Pare,olhe, escute!, como a primazia da visão sobre a audição reflete (reflete!) um projeto moderno de razão clara e distinta (!), de esclarecimento (!) e reflexão objetiva – efetivamente objetiva, como uma lente de aumento, como um aparelho técnico de entendimento. É esse mesmo projeto, nesse mesmo movimento, que nos últimos séculos vai reforçar um controle humano sobre o universo social em que se vive. Basta pensarmos em todas as normatividades com as quais lidamos dia a dia, e com toda a pressão normativa que se esconde, mais ou menos veladamente, nas comunicações mais cotidianas. Na língua, por exemplo.

Há não muito tempo, vimos nas redes sociais um comportamento digno de tal projeto – que circulou, de forma nada surpreendente, através de uma fotografia. Nela, posando com uma placa onde se lia “Não existe PELEUMONIA e nem RAÔXIS!”, um médico – “doutor”, espécie de avatar da racionalidade científica moderna – caçoava de um paciente que, pouco antes, dissera tais palavras numa consulta. Porque, como se sabe pela norma padrão da língua portuguesa, pneumonia e raio-x não são peleumonia e raôxis. E a norma padrão, no projeto linguístico nacional, na normatividade da língua portuguesa, em sua variante brasileira, é a norma correta. Ou, claro, a norma que se pretende correta.


Há toda uma série de implicações éticas em torno desse episódio – como, por exemplo, a veiculação pública de um diagnóstico médico privado – e uma série talvez maior de implicações relacionadas aos desdobramentos históricos das línguas faladas no mundo. Porque se há algo que quaisquer dois ouvidos percebem, talvez mesmo um, é que a língua viva não se presta a amarras.

Falando sobre a ideia de nação, Marcel Mauss indicava no começo do século XX que a língua estratificada, padronizada, é objeto de reverência apenas das elites. Há, para além desse objeto de culto, aquilo que ele próprio denomina “língua viva”, que vive justamente de modo natural, sem fronteiras ou contornos nítidos, sem refinamentos ou ambições políticas, plena de força e liberdade. É contra o projeto claro e distinto da norma centralizadora que a língua viva – a comunicação viva, talvez possamos dizer – se ergue, de modo espontâneo e nas brechas de todas as normas.

A plasticidade da língua, da fala, da sonoridade do ambiente é algo notável em todos os grupos humanos que se comunicam por sons. Muita antropologia já foi feita levando isso em consideração, e também muita literatura. Talvez porque, como a história de Ursula K. Le Guin nos mostra na epígrafe deste texto, antropologia e literatura são feitas sobretudo a partir de escutas. A partir de experiências de contato, audiência, incorporação completa dos sentidos. Graças à abertura do ouvir, em suma. Em som.

Certa vez, quando vivia no Recife, vi passar um carrinho de amendoins cozidos na esquina perto de casa. Numa plaquinha – de papelão, talvez, talvez madeirite – o vendedor dizia “amendoin cozinhado quente”. Há toda uma beleza na sonoridade dispersa do mundo. Nas agências moldadas pelos modos de falar, pela escuta do entorno – social ou mais que isso. Alfred Gell escreveu sobre “A linguagem da floresta: paisagem e iconismo fonológico entre os Umeda” da Nova Guiné. Steven Feld, sobre “Som e sentimento: aves, pranto, poética e canto na expressão Kaluli” da mesma região. Uma amiga que fiz em meio a burocracias acadêmicas, hoje pesquisadora na Califórnia, estuda o canto dos pássaros e a evolução da linguagem humana. O próprio Marcel Mauss indicara mana em canções e sons.

https://bioanthrotransactions.org/ - Madza Yasodara Farias Virgens
  
Penso, então, na diferença entre as duas placas. “Não existe PELEUMONIA” por um lado, “amendoin cozinhado quente” por outro. Algo que, talvez, se evidencie mesmo nas transcrições que ainda fazemos de falas e entrevistas: em que situações a transcrição mantém as peculiaridades da fala, em que situações padroniza o discurso? Doutor e vendedor de amendoin teriam o mesmo tratamento num texto analítico? Num projeto de ordenação do mundo através da escrita? Nisto que sempre fazemos quando, digamos, não atentamos primeiramente ao que ouvimos?

Ministrando um curso de Antropologia e Imagem, ano passado, tive o cuidado de tentar questionar a primazia da visão – esse projeto tão moderno e esclarecido. Antropologia e imagem foram se embaralhando com sonoridades e cantos indígenas, sons naturais, biofonias e certo envolvimento integrado com muito, senão tudo, do que nos chega aos sentidos. Vocês que me leem aqui escrito, já ouviram a polifonia das águas percutidas pelos pigmeus Babenzélé? Ou o canto polifônico das crianças desse povo, que toca na sequência? Ouçam. Não há como dizer com palavras o que se escuta sem elas, como Steven Feld diria.




Não haveria muita capacidade criativa se as normas e padrões da língua estabelecessem diretrizes incontornáveis. E, considerando a possível base linguística de qualquer pensamento humano, não haveria muita criatividade sem a peleumonia, o amendoin cozinhado quente que vi passar na esquina, ou sem a poética que se arrisca a propor o que não está dado – sem a poética que se arrisca a compor.

É nesse contexto que a crítica à peleumonia não apenas limita a interação social, por preconceito linguístico e elitismo, mas também diminui drasticamente as possibilidades de pensamento humano. No fim de 2015, nesse mesmo espírito doutoral, a Presidência da República vetou um projeto que há tempos tramitava e que buscava ampliar o reconhecimento das diversas línguas indígenas faladas no Brasil. Essa ampliação de reconhecimento viria expandir o direito linguístico já estabelecido legalmente há tempos, direito que a Constituição de 88, tão maltratada hoje em dia, frisava bem. O veto, curiosamente, esclarecia que seria difícil respeitar a variedade linguística – e epistemológica, e cognitiva, e pedagógica – porque a variedade linguística atrapalharia os procedimentos institucionais. Marcel Mauss falando sobre o império da língua nacional nunca esteve tão certo.

Ouvir, então, passa também por ouvir o que não se quer – e às vezes não se sabe – ouvir. Passa pelo ouvido como ondas sonoras que se transformam em sentido. Ouvir, esse processo de decodificação do pensamento alheio, de entendimento, é um exercício do tato, das sinapses, do contato entre a voz que fala e a voz que escuta. Ouvir é o Outro se fazendo presente, e não parece haver outro exercício do sensível, e da sensibilidade, mais evidente que isso. Veja-se os recentes movimentos que, nas mesmas redes sociais do doutor-pneumático, são capazes de dizer coisas até então insuspeitas ou flagrantemente ignoradas – como os relatos diretos que muitas mulheres, criando uma rede para falar de #meuamigosecreto, trouxeram à baila. 

Complexo sensório-cognitivo Umeda, em desenho de Alfred Gell

É na dimensão do ouvido, e não do esquecimento, certamente não da ignorância, que vislumbro – ou escuto? – alguma possibilidade para a ação. Como na figura mítica de Guanyin, a deidade budista cujo nome significa “Aquela que ouve os sons do mundo” (inicialmente “Aquele”, mas que na China se transmuta – história para outra hora). Sons que a permitem, além de abrir os ouvidos, estender a mão.

É assim que Jakob Agat Alterra, personagem de Planet of Exile, atualiza a fórmula ritual de audiência e atenção para muito mais que apenas o som. “Ouço com o coração”, ele diz, e adentra a tenda de um outro povo com quem, então, pode dialogar.

Um comentário:

  1. A começar dizendo que gostei do texto Leandro, muito sensivel. A minha antiga profissao fez com que eu aprendesse a ouvir as pessoas na qualidade de clientes. E é interessante como atraves dessa interaçao muita outra coisa vem a baila. Eu diria que eu aprendi a ouvir "atraves" do que era dito. Enfim o tal medico deveria fazer o mesmo descendo de seu pedestal de "autoridade academica". Pra terminar deixo este link cujo autor sabe ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=ShiummeqHo8

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