No
fim de 2015, diversos povos indígenas, órgãos indigenistas e
outros apoiadores do movimento indígena brasileiro se reuniram em
Brasília para a 1ª Conferência Nacional Indigenista. Diversas
pautas importantíssimas, não apenas para os povos tradicionais,
foram debatidas durante os quatro dias de encontro, e o evento pôde
mesmo articular a criação de um Conselho Nacional de Política Indigenista, “órgão colegiado de caráter consultivo, responsável
pela elaboração, acompanhamento e implementação de políticas
públicas”. O que mais me chamou a atenção, entretanto, antes
mesmo da realização do encontro, foi o mote escolhido pelos
participantes para contar os dias até a realização da conferência.
“Calma,
parente.” Desse modo, mais de mês antes da reunião na capital
federal, eu via as redes sociais recheadas de imagens e posts com
estes dizeres: “calma, parente.” E essa expressão ficou comigo,
e creio que ainda está. Calma. “Parente”, sabemos, é o termo
que os povos indígenas de todo o Brasil usam para se referirem uns
aos outros, independentemente de seus grupos sociais, comunidades ou
etnônimos. Todos os povos indígenas desta terra são, assim,
parentes.
E
calmos, mesmo quando não. A imagem da contagem regressiva, dizendo
“calma, faltam dez dias”, depois “calma, faltam só nove”,
depois “calma...” foi de um impacto curiosíssimo, ao menos sobre
mim. Porque, vejam, concordamos que o mundo não anda bem das pernas,
entre mudanças climáticas e presidências interinas, entre
discursos de ódio e perda de ministérios estratégicos. Sabemos que
os últimos tempos também não têm sido bons para esses povos –
os governos recentes foram os que menos demarcaram terras indígenas,
e tramita nos meandros do sistema uma PEC que pretende passar ospoderes de demarcação de terras indígenas e quilombolas aoCongresso Nacional – considerado “o mais conservador desde 1964”,
e certamente não muito sensível às causas das minorias, étnicas e
outras.
Mas
ainda assim os povos indígenas diziam, organizando seu encontro:
“calma, parente.” Num misto de preparação e tranquilidade que
só me pareceu – e ainda me parece – possível de entender se
considerarmos a realidade dessa enormidade de povos. Calma. Não
precisa tirar o pai da forca. Não precisa correr. O céu não vai
cair sobre nossas cabeças. O mundo não vai acabar. Já acabou.
É uma mensagem sutil e forte, poderosa porque viva na luta de todas
essas pessoas, que são muitas. Poderosa também porque compartilhada
por elas em outro tempo, em outro tipo de tempo. Em outra medida.
Correndo de um lado ao outro na vida, publicando artigos ou fechando
contratos, a ideia de ter “calma” não é das mais bem quistas
por nossos modos de vida correntes. O meu mesmo, devo dizer, em
certos momentos já foi, hoje nem tanto. Os de vocês não sei, mas
não me arrisco a dizer que o tempo, rolo compressor da modernidade,
também não os assola. Essa aceleração do mundo, no fim das
contas, inclusive por causa das contas, não deixa ninguém de fora.
Mas o mundo em si, para além do que fazemos dele, também vive outro
tempo. Escalas geológicas, fluxos cósmicos muitíssimo vastos,
eras, éons, estrelas. Ainda que tenhamos a capacidade – nada
invejável – de influenciar negativamente o tempo geológico do
planeta, criando nosso próprio Antropoceno sobre ele. Um dia,
entretanto, o planeta deverá continuar sem nosso incômodo, e seguir
seu curso até um destino que não se sabe.
Há uma imagem muito conhecida, compartilhada por diversos povos ao
longo do tempo e espaço. Nela, vemos – ou ouvimos contar sobre –
uma tartaruga sustentando o mundo sobre o casco. Singrando o espaço,
na versão de Terry Pratchett, às vezes sustentando quatro elefantes
que por sua vez sustêm a terra, às vezes tendo no casco uma ilha
cuja árvore dá cria aos primeiros humanos, como em muitos mitos de
criação de povos nativos da América do Norte. Mas o sentido dessa
imagem, que há muito também singra minha mente e sobre a qual até
já escrevi em outros tempos, só recentemente me pareceu claro. Só
depois de um tempo, de ouvir e reouvir “calma, parente”, senti
ter entendido algum sentido nesse mito.
O fluxo do mundo, o tempo, não é o da correria que hoje, sobretudo
nessa modernidade individualizada – como diria Louis Dumont –
conhecemos. O tempo do mundo é outro. O fluir da Terra é amparado
pelo casco de uma grande tartaruga, e nele é levado. Até mesmo os
mitos de criação que mostram o mundo surgindo de um oceano parado,
por exemplo, como certos Espíritos pairantes de Deus ou Vishnus
adormecidos boiando, mesmo tais mitos parecem compartilhar uma
característica basilar com a tartaruga: calma.
Ou
passos lentos, pelo menos. Diferenciados. Outro ritmo, poderíamos
dizer. A aceleração moderna é também aquilo que faz os modernos
expandirem sobre os outros sua – nossa – própria temporalidade.
Johannes Fabian, em O tempo e o Outro,
trata bem desta questão. Por ela vemos que não apenas impomos
relógios aos outros, mas marcamos horas em nós próprios, tendo
“como objetivo fazer com que o pesquisador de campo ‘ganhe’
tempo, não ‘perca’ tempo, cumpra seu ‘prazo’” (da resenha
de Ronaldo Lobão).
Quando
estive este ano na Assembleia do povo Xukuru, que vive no agreste de
Pernambuco, fiquei hospedado na casa de uma família, bem na aldeia
onde ocorria o evento. Povo da mata, lavradores nas roças que se
estendem por toda a Terra Indígena demarcada, os Xukuru trabalham a
terra sagrada, como chamam, num ritmo de intimidade com a plantação
e a colheita, com a sazonalidade das safras. Essa intimidade – esse
conhecimento, essa verdadeira ciência – não difere muito das
temporalidades encontradas em outros grupos sociais que trabalham a
terra, que plantam, colhem, nos alimentam e pouco a pouco são
atropelados pelo avanço do progresso, pelos latifúndios – hoje
eufemizados como “agronegócios” -, pelas máquinas e grandes
capitais. Não é um ritmo que eu, particularmente, conheça, tendo
sido criado em meio urbano, em estado superindustrializado, vocês
sabem. Mas é impossível não se deixar levar – ou se deixar
ficar, às vezes – pela relação dessas pessoas com o tempo, as
perspectivas de futuro previsível e não angustiante, o trabalho
seguinte, a próxima colheita, o ano que vem.
No
fim da minha estada, me despedindo para descer a Serra do Ororubá e
voltar para casa, ouvi daquela família uma fala bastante repetida.
“Já vai? Então vá com Deus. E até para o ano, se Deus quiser.”
“Até
para o ano.” Até o ano que vem. Até. Porque há Assembleia Xukuru
todo ano, assim como o sol se levanta e as plantas crescem. No meio
tempo, na entressafra, nessa angústia acelerada de viver na cidade,
na universidade, nos prazos, nas cobranças, se há algo que – sinto – às vezes nos falta é essa perspectiva de um retorno.
De um tempo cíclico, como é a colheita, como é a assembleia. De
uma calma que acompanhe o singrar da tartaruga sustentando o mundo.
De uma grande rede que nos oriente, no centro do fim do mundo ou às
vésperas de um grande encontro, uma alternativa, mesmo uma
necessidade: “calma, parente.”
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