terça-feira, 18 de abril de 2017

Podcasts, redes sociais e os limites virtuais da empatia

Em 2014, no meio de uma ressaca meio deprimida de 2013, lembro de estar ouvindo, em meus fones, amigos distantes conversando sobre cervejas e Fórmula 1. Eu estava na Bolívia, e ouvi-los conversando entre si, eternizados em mp3 no meu bolso, de certo modo fazia a ressaca e a tristeza irem embora, ou se acalmarem um pouco. Do lado de fora do ônibus, apenas despenhadeiro, e do lado de dentro dos ouvidos, menos. Durante um período que a mim parecia difícil, em que eu me surpreendia com as possibilidades aparentemente catastróficas da vida, ouvir podcasts servia como um vínculo comigo mesmo, com um tempo anterior a 2013/14, com amigos de quem eu há muito sabia as histórias. Mesmo que os tais amigos não me conhecessem.

No Brasil, de forma geral, podcasts são programas de áudio disponibilizados pela internet, em que um apresentador serve de âncora a uma conversa com diversos participantes. Uma espécie de programa de rádio, de entrevistas a banalidades, mesclado com discussões acadêmicas e mesa de bar. Uma característica curiosa do formato é sua regularidade, normalmente semanal, e a constância da estrutura com que se apresentam: em uns, sabemos que imediatamente após a apresentação dos participantes ouviremos a leitura de emails, em que outros ouvintes como nós falarão, por meio das cartas, sobre experiências com o programa, comentarão sobre algo de edições passadas, farão piadas, e assim por diante. Sabemos, por exemplo, depois de um tempo acompanhando determinado podcast, que após a música final ouviremos uma espécie de erro de gravação, ou piadas internas, ou algo que os editores julgaram engraçado. Com o tempo, vamos nos habituando à presença de pessoas que não conhecemos, e de quem talvez não fôssemos nos aproximar se conhecêssemos.

Podcasts me parecem, assim, uma das formas de contato e convivência virtuais destes últimos anos, deste início de século 21. Surgem, de certo modo, no mesmo período em que as redes sociais se dinamizam e espalham: Orkut, Facebook, entre outras, são formas de contato e convivência virtuais que a cada dia parecem mais inescapáveis. Temos amigos podcasters e temos amigos de Facebook: os primeiros não nos conhecem, e os segundos tampouco.

Isso me faz pensar sobre as diferentes modalidades de amizade virtual, neste ano de 2017, em que "amizade virtual" nem mesmo é um termo com muita validade (nos anos 1990 e começo dos 2000, era). Parece haver uma diferença crítica entre as amizades que ouvintes de podcasts estabelecem com seus podcasters, por um lado, e as amizades que perfis de redes sociais estabelecem entre si. Por mais que perfis conectados pelas redes sejam "amigos" dinâmicos, comentadores, curtidores uns dos outros, o vínculo que se estabelece entre eles não demanda, necessariamente, uma continuidade temporal. Um acompanhamento ao longo do tempo, diríamos. Em momentos de crise midiática, em que a grande mídia é questionada nas mídias alternativas e a bolha social parece aumentar, é muito fácil "deixar de seguir" um amigo nas redes sociais porque ele não compartilhou, na última quinta-feira, de nosso entendimento sobre a polêmica da vez. Não há necessariamente uma maturação, nas redes sociais, dinâmicas e 2.0, como há entre ouvintes de podcast e seus produtores.
Arte de Pawel Kuczynski

Talvez os algoritmos e a velocidade com que as timelines mudam, apagando as notícias antigas, restringindo público alvo, expliquem um pouco essa discrepância de posturas que percebo, de meu ponto certamente limitado, nas redes sociais e em outros espaço da web. Hoje em dia já não é segredo que a polarização de opiniões em redes sociais tende a se agudizar conforme os contatos compartilham das mesmas posições. No Facebook, por exemplo, vivo e convivo com aqueles que compartilham de meus ideias e postagens de ideais: os demais, os Outros, "os obviamente equivocados" são relegados à exclusão (do contato) ou, com mais generosidade, ao simples e indiferente "deixar de seguir".


O que acontece com podcasts, entretanto, me parece completamente diverso. Fiquemos apenas na ideia das bolhas em redes sociais. Se há essa tendência para o isolamento ideológico, essa dificuldade internética de se ouvir o outro - efetivamente outro, não apenas o outro-que-é-como-eu - um fenômeno muito mais sutil acontece de tempos em tempos com podcasts e seus ouvintes. E aqui, antes de falar de empatia, vou conceder a óbvia possibilidade de que haja empatia também nas redes sociais: compartilhamentos e apoios a casos e causas alheias, ou mesmo a eventual união em prol de demandas e interesses comuns.
Mas a empatia que volta e meia ouço em podcasts toca num ponto distinto. Talvez pela temporalidade também distinta - ouço alguns podcasts, com seus participantes, toda semana, há cinco anos ou mais - ou talvez pela diferença de mídia - podcasts, afinal, são conversas que ouço, pessoas que aprendo a conhecer e com quem rio, muitas vezes de quem rio. A constância e o convívio transformam os podcasters em amigos, como já sugeri, e essa amizade oferece um tipo de empatia e uma alcande de sensibilidade que as redes sociais não têm conseguido atingir.

Recentemente, o podcast do portal Cinema com Rapadura - o Rapaduracast - completou 500 edições. São 11 anos de programas constantes, com participantes que já mudaram bastante ao longo da década, mas que continuam de algum modo os mesmos. Ao longo de anos, os ouvintes acompanham as discussões do programa sobre cinema, arte, estética, técnica cinematográfica, bilheteria e franquias milionárias. E também sobre a vida, e as vidas de todos que passam pelo programa como produtores daquele conteúdo. Nesta edição 500, muitos testemunhos de ouvintes foram enviados em áudio, e intercalados ao longo das duas horas de conversa sobre a história do programa. Dentre os áudios, muitos diziam algo que eu disse no primeiro parágrafo desse texto: como é estranho dizer "amigos" a quem sequer nos conhece, mas como é verdadeiro; ao longo de dez, onze anos, ouvintes compartilharam muitas fases e mudanças dos produtores daquele conteúdo, e tais produtores compartilharam muitos de seus problemas e sentimentos. Em se tratando de um podcast de arte, mesmo que entretenimento, não admira que isso aconteça.

Muitos depoimentos de ouvintes diziam de passagens tristes e graves, em que escutavam determinado podcast enquanto escreviam uma carta de suicídio, ou choravam copiosamente por conta de depressão. Muitos depoimentos. E isso me deixou pensando nessa convivência que se estabelece, de certa forma unilateral, mas nem tanto, em que as pessoas se dão tempo para conhecerem umas às outras - os ouvintes porque vão pouco a pouco conhecendo os produtores, e estes porque respondem dinamicamente aos comentários e sugestões de seu público. É uma relação real, de anos, reforçada semanalmente, sem as ânsias de compartilhamento, curtida e atenção das redes sociais que vão estabelecendo bolhas de trocas restritas, em que nada do mundo externo nos chega - e das quais também não nos livramos.

A experiência e a paciência do tempo, no caso dos podcasts, faz esse tipo de estranho vínculo virtual se tornar real. E para quem conhece o meio, essa edição 500 do Rapaduracast não é extraordinária: muitos outros podcasts causam esse efeito de "amizade virtual real" e permitem, em tempos de "13 razões", que pessoas solitárias, deprimidas, com dificuldades de relacionamentos sociais, se relacionem com algo verdadeiro. A aceleração que delimita as relações possíveis numa rede social, em que opera certa lógica de oposição excludente, não parece acontecer em podcasts com a mesma frequência. Não, pelo menos, com a mesma característica.

Talvez, para além do tempo mais extenso dos podcasts, da convivência mais parcelada e atenta, haja outro fator importante na composição dessas comunidades de amigos virtuais: ouve-se o outro, e ainda que o Twitter esteja aí para veicular xingamentos-muitos, e ainda que a caixa de comentários esteja aí para não-ser-lida, o exercício do ouvir, da atenção à fala do outro, se faz presente. Mais que presente, inclusive. Se faz indispensável.

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